Emprego do acento grave na locução "a distância"

A locução adverbial "a distância" deve ou não deve receber o acento grave?

Olá, amigos do concurso…

         Como estamos nós?? E a  disposição, como anda?? Espero que você esteja firme e forte. Sei que não é fácil. Mas quem disse que viver é fácil? Gonçalves Dias, ilustre escritor modernista, asseverou com propriedade: "Viver é lutar". Por outro lado, lembre-se de que viver é fascinante. E de onde vem o fascínio pela vida? Certamente do perigo que ela traz, da vontade de vencer os obstáculos, da vontade de "dar certo". Por isso, reclame menos e lute mais.

 

         Hoje vamos tratar de uma dúvida que recebi por e.mail. Veio da Jaciana Lins, residente na cidade de Marília em São Paulo. Questionou-me ela por que não existe o acento grave na locução adverbial "a distância".

Vamos às considerações...

         Em primeiro lugar, quero confessar que, há anos, gostaria de falar sobre essa dúvida, mas não tive oportunidade – não sei se foi bem 'oportunidade' ou falta de amadurecimento, de conhecimento mesmo. Como a internet nos dá a liberdade de explorar não só as questões de concurso, mas também os diversos fatos que envolvem a nossa língua, resolvi escrever um artigo analítico sobre o assunto – sugiro que pare por aqui, não prossiga e volte a estudar seus livros, seus assuntos, se você é daqueles que gostam dos resuminhos, da coisa pronta, sem muito raciocínio. Advirto: meu artigo será longo, muito longo mesmo... Leiamo-lo...

        Há mais ou menos dois anos, tenho lido vários escritores, denominados de "clássicos" – Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Machado de Assis, Almeida Garret. Confesso que busco nas leituras não o conhecimento literário – literatura não é a "minha praia" –, mas o entendimento para os fatos gramaticais, para os fatos que sistematizam a chamada língua padrão. Como tais escritores foram e ainda são modelos do bom português, sirvo-me deles para tentar justificar alguns casos da língua – busquei neles e em alguns conceituados gramáticos, portanto, a resposta para a dúvida da consulente.

        Primeiramente, é de opinião unívoca que sempre haverá crase quando a expressão A DISTÂNCIA vier determinada, especificada. Vejamos alguns exemplos:

"À distância de um oitavo de légua do paraíso restaurado do meu amigo, enxergarmos D. Mafalda e os filhos, e o Tranqueira com dois ao colo e outros dois pendurados das algibeiras da japona." (Camilo C. Branco – Amor de salvação)

"... que, finalmente, não podendo mais resistir aos seus férvidos desejos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a realidade) e ele ... " (Joaquim Manuel de Macedo – A moreninha)

"Pois bem, assim seria: bater-se-iam à pistola – mas com uma das pistolas carregada e a outra não, tiradas à sorte, apontadas à distância de um lenço." (Eça de Queiroz)

"À distância curta da cabana, se elevava à borda do oceano um alto morro de areia; pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavam os pescadores Jacarecanga." (José de Alencar – Iracema)

            O problema surge quando a expressão "a distância" aparece sem determinação. Não são poucas as vozes que preconizam que a expressão "a distância" não deve receber o acento grave. Alega-se – e com razão – que o "a" que precede o substantivo "distância" é uma mera preposição. Constatação se faz desse argumento quando se observa a utilização da construção "em distância" em vez de "a distância" usada por muitos escritores de peso:

"Por algum tempo os dois exércitos conservaram-se em distância um do outro, como dois antigos gladiadores, observando-se mutuamente antes de começarem uma luta que para algum deles tinha de ser, forçosamente, a última." (A. Herculano – Eurico, o Presbítero)

"Cada uma dessas palavras era dita com grandes intervalos uma da outra, por modo que a última já se devia de ouvir sem dificuldade em distância." (Almeida Garret – O arco de SantAna)

"O que dele se conhecia bem pouco adiantava às linhas desanimadoras do padre João Daniel no seu imaginoso Tesouro Descoberto: “Entre o Madeira e o Javari, em distância de mais de 200 léguas, não há povoação alguma nem de brancos nem de tapuias mansos ou missões”. (Euclides da Cunha – Contrastes e confrontos)

            De fato, na maioria dos livros que li, encontrei a expressão "a distância" empregada sem o acento grave. O não uso do acento grave justifica-se pelo caráter indeterminado de tal locução. Essa indeterminação é manifesta nas locuções "a bastante distância", "a pouca distância", "a curta distância", "a alguma distância", "a grande distância". Observe:

"Dentro de poucos instantes ei-lo que volta, e os muçulmanos param a curta distância." (A. Herculano – Eurico, o Presbítero)

"Já os três fugitivos iam a alguma distância, quando, como tomado de uma ideia súbita, um dos esculcas exclamou: ... " (A. Herculano – Eurico, o Presbítero)

"Mariana estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância de Simão." (Camilo C. Branco – Amor de perdição)

"Encontrando os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância, dirigiu-se ao Leonardo, e fez-lhe sentir que, querendo a todo o custo naquela noite segurar o Teotônio, temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por qualquer meio; ..." (Manuel A. de Almeida – Memórias de um sargento de milícias)

Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. (Camilo C. Branco – Amor de perdição)

"Dona Estela acompanhou-os a distancia, vagarosamente, afetando preocupação em compor um ramalhete, cujas flores ela ia colhendo com muita graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos pés para alcançar os heliotrópios e os manacás." (Aluisio Azevedo – O Cortiço)

"Depois volveu a cabeça um pouco para trás, onde ficava a filha, a distância, de olhos baixos." (Machado de Assis, Iaiá Garcia)

"- Acudam, acudam! berrava Silvério a distância." (Eça de Queiroz – O crime do padre Amaro)

"Quando chegamos à esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique, tique-tique..." (Machado de Assis – Dom Casmurro)

"O seu grande cuidado era a colocação dos santos; alterava-a constantemente, porque às vezes, por exemplo, sentia que Santo Eleutério não gostava de estar ao pé de S. Justino, e ia então pendurá-lo a distância, numa companhia mais simpática ao santo." (Eça de Queiroz – O crime do padre Amaro)

            Entretanto, encontrei também uma pá de exemplos, em escritores respeitáveis, nos quais a expressão "a distância" aparecia com o acento grave. Em alguns, como em Eça de Queiroz, encontrei a expressão "a distância" tanto sem (exemplos acima) quanto com o acento grave.  Vejamos:

"À distância erguem-se os arcos triunfais feitos de barrotes cor de púrpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes." (Eça de Queiroz – O Mandarim)

"E deixava-se viver, gozando como um favor cada dia que vinha sentindo vagamente, à distância, alguma coisa de indefinido e de tenebroso onde se afundaria!" (Eça de Queiroz – O primo Basílio)

"Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam à distância." (Euclides da Cunha – Os Sertões)

"Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam à distância, pareceu-lhe que a oportunidade era de molde para interpelação decisiva." (Euclides da Cunha – Os Sertões)

"Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância ou quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais sutil também

Uma coisa que quer o som do mar

 E o estar longe de tudo e não parar."

( Fernando Pessoa – Cancioneiro)

          Coletei outros exemplos no livro do professor Augusto Gotardelo, "A crase nos bons escritores". Vejamo-los:

"Se a via, olhava muito para ela, detinha-se à distância, à porta de uma casa..." (Machado de Assis – Esaú e Jacó)

"À distância, viam-se as janelas de uma parte da casa..." (Raul Pompéia – O Ateneu)

"Este processo de capturar à distância impedirá a fuga dos malfeitores." (Machado de Assis – Brás Cubas)

            Para não ficar somente nos escritores,  destaco lição do professor e gramático Evanildo Bechara. Em sua "Gramática Escolar da língua portuguesa", defende o ilustre mestre que a locução "à distância" deve vir sempre com o acento grave, por se tratar de locução adverbial, à semelhança de "à vista, à direita, à esquerda etc.".

            Outro nome de respeito é o do professor Celso Pedro Luft. Em sua maravilhosa obra "Decifrando a crase", preconiza o gramático:

"Na locução a distância, sempre se pode acentuar o a: à distância. Mas acento obrigatório nos casos iguais aos da frase (Vejo o vapor à distância de 10 metros), com o substantivo "distância" determinado, especificado: distância de tantos metros, quilômetros. "Especialistas" em crase (há disso, sim), mas desinformados das tradições do idioma, querem que seja erro acentuar o a quando distância é indeterminada (a distância = longe), pois esse a é só preposição. Resposta: nas sequências circunstanciais de [Prep. "a" + Subst. Fem. Sing.] a tradição da língua é acentuar. Um acento de clareza na preposição "a", para não confundir com o artigo feminino."

            Destaque-se, por oportuno, que nem todo caso de emprego do acento grave significa "contração", "junção", "fusão", como nos ensinaram na escola tradicional. Como disse o professor Celso Pedro Luft, "um acento de clareza na preposição a". Traduzindo: há muitos casos de emprego do acento grave que servem à dissolução de ambiguidades. Basta citar exemplos do tipo "Cheirar a gasolina" e "Cheirar à gasolina"; "Receber a bala" e "Receber à bala"; "Despediu-se a francesa" e "Despediu-se à francesa"; "Pintar a máquina" e "Pintar à máquina" para se perceber quanto o acento grave é necessário para se evitar uma ambiguidade.

            Na mesma esteira, analisemos o seguinte período: "Enxergo a distância." O que se quer dizer finalmente? Que se enxerga o "espaço que separa"? Ou que se enxerga "distantemente"? O emprego do acento grave aqui se faz imperioso para que a ambiguidade se desfaça.

            Outrossim, em artigo, veiculado em um jornal carioca, datado de 7/1/99, o professor Evanildo Bechara mais uma vez defende a ideia: "Concordamos em que geralmente se deva empregar o acento em "ficar à distância", mas isto não significa tirar ao escritor a possibilidade de querer marcar a indeterminação, se isso ele julgar necessário à fiel comunicação de sua mensagem."

            Julgo também pertinente citar valiosa lição da professora Maria Helena de Moura Neves, extraída de seu livro "Guia de uso do português – confrontando regras e usos":

"Entretanto, também é usual a expressão "à distância" (com acento grave no a) quando não há especificação numérica para a distância. Ocorre que, como o artigo antes do substantivo, e, portanto, com a crase ( à ) , pode-se  obter indicação mais segura de que se trata de uma expressão adverbial, e, a partir daí, pode haver maior clareza de significado."

            Conclusão!!!!!!!!

            Defendo a tese de que é possível sim acentuar o "a" da locução adverbial "à distância", a despeito de ela não vir determinada, especificada. O acento será de rigor, entretanto, se houver a possibilidade de ambiguidade na estrutura.

Salientamos existirem, portanto, as duas formas para a locução adverbial: a distância (sem o acento grave) e à distância (com o acento grave). Negar esse entendimento é reprovar as lições colhidas em grandes escritores e profundos estudiosos do nosso idioma.

            Espero que você – que pacientemente me acompanhou até ao final deste artigo – tenha compreendido nossas explicações.

            Um grande abraço.

            Soli Deo Gloria.

 

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